Naquele ano o scratch brasileiro fez encher o coração da sua gente, pondo na alma do torcedor a vibração incontida dos momentos dramáticos e inesquecíveis pela conquista do Sul-Americano de 1919. As façanhas do quadro brasileiro correram mundo, perpetuando-se nos anais esportivos como marco de glórias. O povo, tratado como bicho pelos governantes, viu na vitória do futebol de sua seleção uma representatividade triunfal. Quanta alegria, quanto entusiasmo, que jamais serão esquecidos pelos amantes da bola.
UMA EXCEPCIONAL ORGANIZAÇÃO
Além da parte estrutural, o Brasil cuidou de ter uma comissão técnica formada por Arnaldo Silveira (capitão), Amílcar Barbuy, Mario Pollo, Affonso de Castro e Ferreira Vianna Netto. Foram decididos com melhor vigor a convocação dos jogadores e os horários de treinos marcados com antecedência. Tudo feito da melhor maneira possível pelo que se tem notícia. Apesar de uma polêmica entrevista de Sylvio Lagreca, dada a Gazeta Esportiva, ao qual chegou a afirmar que os jogadores seriam escalados por indicações politicas e não por suas qualidades técnicas. Com jogadores e membros da comissão técnica desmentindo dois dias depois e apaziguando a situação, sem deixar o caso ganhar grandes proporções.
Naquele tempo de pouco informação das mídias (sem TVs ou Rádios), e alta taxa de analfabetismo, as pessoas demoraram a assimilar a ideia daquele acontecimento. Somente aos poucos, todos foram se dando conta do grande evento, conforme foram desembarcando no caís da Praça Mauá as delegações da Argentina, Chile e Uruguai, sendo recepcionados com entusiasmo e festa no Clube São Cristóvão. Após o desembarque os selecionados se hospedaram no Hotel dos Estrangeiros. Uma infelicidade, contudo, foi a morte do goleiro uruguaio Roberto Chery, falecido, ao que se sabe, em decorrência de uma apendicite aguda.
A expectativa e o entusiasmo gerado pela estreia do scratch brasileiro, dia 11 de maio, contra a representação Chilena, foi incrível. A comoção aquele dia mostrava a mudança do interesso do brasileiro pelo futebol. Mesmo com o acesso aos clubes sendo restrito aos integrantes da elite, tendo a classe popular proibição aos jogos e até mesmo ao gramado, o estádio das Laranjeiras ficou lotado. Nas arquibancadas só se observava torcedores & torcedoras elegantes (com chapéus, terno/gravata ou vestidos longos). Próximo ao estádio os morros também ficavam apinhados pelos menos favorecidos. Segundo o Jornal do Brasil “eram duas horas da tarde quando a bilheteria fechou. A enchente foi colossal”. Muitas pessoas, mesmo com ingressos, acabaram ficando de fora e isso causou protestos e tumultos, principalmente quando de acordo com a nota “O portão central também foi fechado”. Aqueles que conseguiram entrar, ainda segundo a matéria, “devido ao enorme aperto, passaram para o local da arquibancada aos pulos”.
Menos afoitos para sair jogando os chilenos preferem guarnecer a retaguarda na segunda fase, enquanto o Brasil não diminui o ritmo. Em um dos ataques brasileiros, aos 31’, após um bombardeio pra cima do goleiro chileno, Friedenreich aproveita e consegue marcar mais um. Pouco depois, Haroldo assinala nova contagem (5x0). Perto do fim, aos 38’ complementar, deu tempo para Neco fechar a goleada em 6 a 0! Muita emoção e festa nas arquibancadas pela incrível façanha brasileira, os aplausos tomaram conta do estádio quando o argentino Juan Pedro Barbera apitou o final do prélio. O povo que queria seu lugar, seu espaço na nação, começou a encontrar o futebol nessa dilatada contagem.
Dois dias depois, em um duelo bastante equilibrado, o atual Bicampeão Uruguai venceu a Argentina por 3x2.
No dia 18 de maio, outro mundaréu de gente tomou conta das arquibancadas das Laranjeiras desde o meio-dia, para a segunda apresentação brasileira. Mesmo com a boa apresentação ante o Chile, ocorreram algumas alterações do quadro nacional, com as entradas de Fortes, Millon e Heitor nos lugares de Gallo, Luiz Menezes e Haroldo. Pela frente os sempre habilidosos e aguerridos argentinos, que tinham como destaque o defensor Armando Reys, os meias Pedro Calomino, Martinez e Juan Perinetti, além dos goleadores Izaguirre e Edwin Clarcke. Noticiava-se que “A busca por um lugar naquela festa tornava-se um privilégio”, relatou o Jornal do Brasil. Com gente por todos os cantos, “a concorrência extra-muros também era colossal: o morro que fica numa das cabeceiras do estádio estava igualmente repleto; nele formigava uma multidão irriquieta que para ali se guindou à força de braço, fazendo verdadeiros prodígios de equilíbrio para não ser deslocada pelos retardatários. Na geral, parte castigada pelo sol, os assistentes comprimidos uns pelos outros, a chupar tangerina, jogando cascas sobre os que lhe ficavam por baixo, berravam pedindo o início do jogo” descreveu o jornal O Imparcial.
A decorrência se insinuava para ambos os lados no recomeço da partida, sendo uma jogada argentina parada com incrível defesa do arqueiro brasileiro, definitivamente consagrado. No lance seguinte, aos 12’ do complementar Fried, Arnaldo e Neco fazem troca de gentilezas com passes curtos, Arnaldo manda o balão a meia cancha, o excepcional, Amílcar, domina e resolve experimentar dali mesmo o goleiro Isola, um petardo sensacional que furou as redes argentinas deixando a plateia boquiaberta. A resposta Argentina veio 8 minutos depois, Izaguirre passou por Píndaro e venceu o goleiro Marcos. Depois brilhou Bianco, soberano na defesa, impedindo a igualdade. Na vantagem o jogo finalmente fluiu para os brasileiros, após triangulação de Arnaldo com Friedenreich, a bola chega à Millon, que vence os marcadores na velocidade e atira o couro fazendo 3 a 1! “Consolidado o esplendido triunfo brasileiro, que apesar de belas jogadas ofensivas, teve Bianco convertendo-se no expoente máximo da partida” destacavam os jornais.
No dia 25 de maio de 1919, também no Estádio das Laranjeiras, o Uruguai venceu o Chile por 2 a 0, ficando na igualdade de pontos com os brasileiros. A seleção uruguaia era dotado dos grandes jogadores de Peñarol e Nacional, formando em sua base Alfredo Foglino, José Vanzzino, José Pérez, Héctor Scarone, Ángel Romano, Isabelino Gradín & outras feras. Eram os atuais Bicampeões continentais e favoritos para o Tricampeonato.
Assim, após às duas primeiras rodadas, brasileiros e uruguaios chegaram ao compromisso do dia 26 de maio pensando em destinar o título, no campo das Laranjeiras. Com apenas 20 minutos de jogo, os uruguaios fizeram valer seu favoritismo abrindo 2 a 0, com gols de Gradín (13’) e Scarone (aos 17’). O resultado deixava a gente brasileira, que transbordava o campo do Fluminense e o morro do Mundo Novo, tristonha e em verdadeiro tom de luto. O sonho parecia findado. Ainda na primeira fase, porém, um dos líderes do grupo, Manuel Nunes, o Neco, energizou os companheiros: "Não há de ser nada! Vamos lutar pelo Brasil, rapaziada! Vamos para cima do arco uruguaio". Mais que falar o herói brasileiro chamou a responsabilidade aos 29', venceu a defesa uruguaia e atirou sem chances para o guardião uruguaio Saporiti, que só olhou, Brasil 1x2! A segunda fase começa e aquela garra pedida por Neco fez fervilhar no sentimento dos patrícios, a equipe se lançou à frente enquanto os uruguaios recuavam. A apreensão tomava conta do estádio, quando novamente Neco (um dos artilheiros do torneio ao lado de Fried), desvencilhou o embrulhamento defensivo adversário e deferiu novo golpe vencendo a linha fatal do gol uruguaio, empatando o cortejo (2x2)! Aquele tento foi heroico, toda a gente brasileira voltou a sorrir novamente, nada estava perdido!
Nos arredores das grandes redações jornalísticas a emoção também foi grande, pessoas se reuniam para observar o placar exposto, as mudanças ocorrendo conforme ligavam para anunciar os gols.
O Brasil jogava no 2-3-5, esquema tradicional da época. Por atuar com três jogadores que eram em essência atacantes e não propriamente meias, casos de Neco, Fried e Heitor, a criação se dava por meio da linha média com Amílcar e os pontas Millon e o capitão Arnaldo Silveira. O trio final (os defensores Píndaro & Bianco) pouco subia à frente e também tinha a proteção lateral de Sérgio e Fortes.
NASCE A PÁTRIA DE CHUTEIRAS
Igualados em todos os contextos, teve de ser marcado um duelo desempate para desfecho do valor máximo, dia 29 de maio de 1919. A ocasião era um marco na história esportiva do Brasil e o governo decretou ponto facultativo em todas as repartições públicas, como bancos e casas de comércio, que ficaram fechados. A partida foi marcada para iniciar às 14 horas, mas a torcida brasileiro chegava ao Estádio das Laranjeiras desde às 9, abarrotando as arquibancadas do palco do desfecho. Os portões teriam sido fechados desde o meio-dia e o que se noticia eram torcedores dispostos a pagar qualquer quantia para assistir à finalíssima. A renda chegou aos 316 contos de réis, uma fortuna na época.
A partida se iniciou contida pelos selecionados e prevalecendo maior preocupação com a meta, as equipes pouco se digladiaram. As organizações buscavam o ataque de forma planejada, contendo a ansiedade e esperando um momento mais auspicioso, acabando por deixar os goleiros em estado de tranquilidade na primeira etapa. Ao retornarem ao campo veio às ações mais agressivas, trazendo as emoções que a primeira parte não dera. Com Romano a primeira chance mais clara, Gradin também tentou, mas ambos acabaram paralisados pelo agigantamento de Marcos Carneiro de Mendonça. Pelo lado brasileiro a torcida pôde se encher de ânimo com Heitor, em oportunidade ideal, mas não conseguiu vencer Saporiti. Os aficionados brasileiros ficam frustados no chute de Friedenreich, que acabou tendo muito capricho. Corria pelo meio-campo o truncamento e a partida uma batalha de espaços, se antes os olhares eram de ansiedade e entusiasmo, com a luta campal se transformavam em angustiante tensão. As retaguardas pareciam impenetráveis, quando ocorriam chances os goleiros se certificavam de brilhar, fazendo o empate permanecer.
Sem gols na peleja, mesmo sem permitir substituições, o regulamento previa das duas equipes jogarem quantas prorrogações fossem necessárias até se conhecer um vencedor. Assim, se seguiu a partida, em luta de disposição e estratégias, embora já se notasse o cansaço dos jogadores de ambos os lados. Os uruguaios que vieram certos de que regressar à sua pátria como vencedores do certame, por muito pouco não obtiveram a vitória com Scarone já no fim da prorrogação inicial, sozinho o avançado arrematou violentamente e esperou o gol certo, enquanto o dirigente uruguaio Héctor Gómez já comemorava. Á frente da meta, porém, o incrível Marcos, conhecido por usar uma fita roxa no calção, efetivou verdadeiro milagre para desespero dos uruguaios, incrédulos no lance! Anos mais tarde, Marcos diria ter sido a “defesa mais difícil e mais importante da sua carreira”. Aquele lance motivou os brasileiros a reagirem.
- escreveu o jornalista Mário Filho, no livro "O negro no futebol brasileiro".
As comemorações seguiam no centro da então capital federal (o local dos grandes acontecimentos), pela Avenida Rio Branco, espaço ao qual o povo acompanhou o jogo de frente as redações jornalísticas. Aos poucos, foi sendo assimilada a informação do inédito e monumental feito por todo o país, com ampla divulgação nos principais jornais e revistas da época, também em filmagens emocionantes, com multidões que lotaram as salas de projeção em Belo Horizonte e outras cidades. O futebol virava parte do brasileiro e o brasileiro passava a ver o futebol como sua representação social. Aquela conquista inspiraria poesia, virou musica na versão de um jovem com apenas 22 anos, chamado Alfredo da Rocha Viana, o grande Pixinguinha, que acompanhou nos arredores das redações. Em 1917, ele já havia composto o choro “Carinhoso”, clássicos da Música Popular Brasileira. Com a felicidade da conquista veio a composição de outro dos seus choros mais famosos: “Um a zero”, em parceria com Benedito Lacerda. A obra ganharia letra somente nos anos 1930, sendo gravada por Orlando Silva, o “cantor das multidões”, para a consagração de vez ao compositor.
Vai começar o futebol, pois é,
Com muita garra e emoção
São onze de cá, onze de lá
E o bate-bola do meu coração
É a bola, é a bola, é a bola,
É a bola e o gol!
Numa jogada emocionante
O nosso time venceu por um a zero
E a torcida vibrou (...)!!!
A epopeia de conquistar o Campeonato Sul-Americano de 1919 foi a gênese da paixão do povo brasileiro pelo futebol. Vivenciando um ambiente marcado por injustiças sociais e politicas, a população se identificou e encontrou sua representação na vitória do Brasil. Aquela equipe era formada por jogadores de diferentes perfis, tanto pela cor da pele como a posição na classe social. Era o retrato de uma nação mais igualitária, pluralizada, que gerou na sociedade brasileira um sentimento de orgulho pleno. Se antes o brasileiro se via como um miserável, era tratado assim pelos próprios governantes, encontrou nessa mistura de brancos, mestiços e negros com a bola nos pés uma forma de ter sua representação triunfal. Nascia assim, definitivamente, A Pátria de Chuteiras!
- Campeonato Sul-Americano de Seleções (A Copa América) de 1919.
FAÇANHAS & LEGADO
- A conquista transformou o futebol numa representatividade cultural do povo Brasileiro.
FONTES/REFERENCIAS:
Jornais do Brasil, Mundo Esportivo, Correio Paulistano, O Imparcial;
Arquivos Nacional (CBF);
Descrição dos Gols de Neco com ajuda de Maurício Sabará (autor do Livro Generalissimo Amílcar Barbuy);
Livros referencias “O Negro no Futebol Brasileiro” (Mário Filho) e “Sul-Americano de 1919: Quando o Brasil Descobriu o Futebol” (Roberto Sander).


